Em pleno século XXI, é difícil pensar em uma pergunta mais absurda.
Não existem mulas-sem-cabeça, boitatás, lobisomens ou qualquer ser cuja
existência não possa ser provada pela ciência (assim pensam os céticos). Mas
procure voltar um pouco no tempo, uns 300 anos, e tente pensar como um colono, em uma terra carregada de superstições quase medievais. No século
XVIII, o homem comum tinha tanto medo de criaturas fantásticas como de mordidas
de cobras ou emboscadas de índios. No Brasil de 1700, topar com um curupira em
uma mata fechada era tão possível quanto ser farejado por uma onça faminta.
O Brasil de 1700 é o cenário de Danação, e o folclore é o pano de fundo desse romance. É para essa terra de crendices que o leitor é
transportado. E deverá compartilhar do mesmo medo do desconhecido que atormentava
brancos, índios e negros sem distinção. Então, pense como um colono e se
permita imaginar como responder a pergunta e sair de uma enrascada que podia
custar sua vida.
Como vencer uma mula-sem-cabeça?
Esqueça os tiros. A mula é imune a balas. Você não está
lidando com um animal, mas com uma mulher amaldiçoada por fazer sexo com um
padre. E é essa danação que a transforma toda sexta-feira de madrugada em algo
que mata quem encontra pela frente, sem dó ou remorso, até pouco antes do amanhecer.
Se tiros não resolvem, quem sabe uma boa e afiada espada? Provavelmente, não.
Provavelmente...
Só três coisas surtiam efeito: Primeiro, tirar algumas gotas
de sangue com um alfinete virgem ou coisa parecida. Se você tivesse coragem
para aproximar-se de um monstro enfurecido que cospe fogo protegido apenas por uma
agulha essa poderia ser uma saída. Assim, a maldição seria quebrada.
A segunda opção é ainda pior. Algumas mulas traziam arreios
presos à boca (eu sei, eu sei... se ela não tinha cabeça, como teria boca? Mais
uma vez, você não está no século XXI...). O arreio flutuava em uma torrente de
fogo, no lugar onde estaria sua cabeça,
e bastava arrancá-lo para que a criatura voltasse a ser uma mulher. Mais
arriscado que o alfinete.
Por sorte, havia uma última alternativa. Se o mesmo padre
que a seduziu (ou vice-versa) rezasse uma oração em seu nome no início da
missa, sua amante deixaria de se transformar em mula-sem-cabeça. Infelizmente,
poucos padres devem ter se lembrado disso. Ou não se sentiam culpados pela
falha e não viam motivos para arrepender-se.
Essa foi apenas uma pequena amostra do universo fantástico que
tanto aterrorizou nossos antepassados. Volta e meia vou postar aqui no blog um
pouso desse mundo tão esquecido. E sempre vou estar disposto a um bom papo com quem, como eu, curte nosso folcore.
PS: A mula-sem-cabeça é um mito vindo de Portugal, trazido
pelos colonizadores a partir do descobrimento, mas não era avistada em todo o
Brasil. No Maranhão e Pará o destino da amante do padre era outro: tornar-se a cumacanga. Às sextas-feiras a cabeça da
mulher deixava seu corpo e, em chamas, passava a correr pelos campos. Difícil escolher
a pior das maldições.
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